Assim que Harold Leeson, CEO da Natural Foods, parou no estacionamento da sede de sua empresa, o celular tocou. Era Kenneth King, um dos membros do conselho. Harold aprumou-se no assento antes de atender.
“Isso é um absurdo”, disse Ken imediatamente.
“Eu sei”, retrucou Harold, com voz arrastada de cansaço. “Mas nossa equipe de publicidade está me dizendo que isso vai se acalmar logo — as pessoas vão acabar esquecendo.”
“Que pessoas? A mídia? Nossos funcionários? Nossos clientes? Porque muitas pessoas estão aborrecidas conosco exatamente agora. E pessoalmente, acredito que eles têm direito de estar.”
O problema havia começado várias semanas antes, quando o Star Tribune publicou a história sobre a doação que a Natural Foods, uma cadeia de supermercados orgânicos de médio porte localizada em Minneapolis, tinha feito para um supercomitê de ações políticas (PAC, na sigla em inglês) chamado Minnesota Business First. A empresa tinha decidido apoiar o grupo por causa de seus planos de financiar propagandas promovendo políticos, nas próximas eleições, que tinham sólidas plataformas pró-negócios. No entanto, no último minuto, devido à pressão para agradar eleitores conservadores numa corrida apertada, um dos candidatos, Pat Erikson, um astro em ascensão do partido republicano de Minnesota, tinha assumido uma posição claramente contra o casamento gay, afirmando que votaria contra qualquer lei para legalizá-lo. Para surpresa de Harold, a Natural Foods agora estava associada a essa posição de Erikson.
“Também não estou nada feliz com ela”, confirmou Harold a Ken. “Você sabe mais que ninguém como eu não quero a palavra ‘antigay’ associada à Natural Foods”. Os dois tinham descoberto no início de seus dez anos de relacionamento profissional que cada um deles tinha um filho gay.
Quando Harold aprovou a doação para o superPAC alguns meses antes, ele não se preocupou em questionar como a Minnesota Business First avaliava candidatos em relação a assuntos sociais. E mesmo quando Erikson assumiu aquela postura radical sobre casamento gay, Harold não podia prever quais seriam as consequências para a Natural Foods.
Clientes tinham organizado protestos em várias das maiores lojas da empresa em São Francisco, Los Angeles e Minneapolis e muitos de seus dez mil funcionários tinham assinado uma carta dirigida a Harold pedindo que a Natural Foods explicasse seu apoio a Erikson. Vários executivos seniores expressaram pessoalmente sua preocupação porque gays e lésbicas, membros de suas equipes estavam se sentindo constrangidos. Com a ajuda de Betty Martin, chefe de relações institucionais da Natural Foods, Harold tinha distribuído um comunicado interno afirmando que a corrente de doações não significava que a Natural Foods endossava todas as opiniões dos candidatos apoiados pela Minnesota Business First e que o comitê executivo e o conselho pretendiam rever suas políticas sobre doações de campanha.
“Eu vi sua carta aos funcionários, e foi a mensagem certa”, observou Ken. “Deixe claro que a Natural Foods não apoia a posição do Erikson. Nós somos uma organização socialmente progressista.” A empresa era conhecida por fazer doações generosas para organizações sem fins lucrativos, tanto em Minnesota como em outros estados onde tinha lojas. Ela doava 5% dos lucros em aplicações financeiras a entidades assistênciais todos os anos.
“Mas precisamos dar mais um passo”, continuou Ken. “Na condição de alguém que é pago para pensar nos riscos que você e sua equipe não percebem, devo aconselhá-lo a evitar cometer o mesmo erro novamente. A Natural Foods deveria sair da política.”
Harold sabia que essa era a forma de Ken assumir o controle da situação. Ken sempre tinha defendido que o mundo de doações de campanhas e de lobby era um campo minado, que mais cedo ou mais tarde poderia explodir, exatamente como agora. Mas ele foi vencido pela maioria dos diretores que acreditavam que ignorar a política era ainda mais arriscado. Havia muitas questões políticas, de impostos a regulamentação de alimentos, nas quais a empresa precisava ter voz se quisesse continuar como uma empresa bem-sucedida e lucrativa e concretizar sua missão de colocar alimentos saudáveis ao alcance de novos clientes.
“Todos gostam de dizer que é impossível”, continuou Ken. “Mas olhe para a Starbucks, Costco. Elas não fazem doações para campanhas nacionais. Elas não fazem lobby no Congresso. E a decisão da Suprema Corte em Citizens United não mudou a posição delas sobre isso.”
“Ora, Ken. Isso é verdade, mas essas empresas estão na política. Elas se envolvem simplesmente de forma que não deixam ‘recibos’ óbvios, soltos por aí, para que a mídia nacional os encontre. Construímos nossa reputação fazendo a coisa certa para as pessoas — nossos clientes, nossos funcionários, o ambiente — e a maioria das questões em que nos envolvemos, sempre coloca os acionistas em primeiro lugar. Lembre-se de como apoiamos a expansão dos programas federais de educação alimentar e segurança. Precisamos de influência política para fazermos essas coisas acontecerem. E não nos custa muito: é uma porcentagem mínima de nossa receita.”
“Podemos manter essa reputação doando para entidades assistenciais e sem fins lucrativos, mas a política está se tornando muito perigosa”, retrucou Ken. “Não estou sequer seguro de que estamos obtendo os resultados que queremos com essas doações.”
“Já passamos por isso antes”, prosseguiu Harold. “Betty deixou claro que apoiar esses PCAs não se trata de burlar a legislação ou comprar votos, mas ela nos dá representatividade. Como você acha que eu teria conseguido uma audiência com o governador em menos de 24 horas se não tivesse feito essas doações?” No ano passado, a Assembleia Legislativa de Minnesota propôs uma lei sobre rótulos em produtos geneticamente modificados que, se passasse como estava redigida, teria imposto exigências inconsistentes com as de outros estados, forçando nossa empresa a mudar seu sistema de rotulagem, o que custaria milhões de dólares. O governador tinha dado sua palavra de que a vetaria e encorajaria os legisladores do estado a focar em regras mais consistentes com as de outros locais.
“Por favor. Somos um dos maiores empregadores de Minnesota. Teríamos tido esse acesso, mesmo que não tivéssemos feito doações.”
“Não é isso que a Betty diz”, replicou Harold. “Vamos conversar com ela na reunião do conselho.”
“Você sabe qual vai ser a posição dela”, acrescentou Ken. “Ela não quer arriscar o emprego.”
Sem saída?
Harold estava abrindo a porta do carro quando o celular tocou novamente. Era Betty. Ele estava certo de que não gostaria de ter aquela conversa andando pelos corredores, então fechou a porta e recostou-se no banco novamente.
“Ouça, Harold. Espero que você não esteja em pânico esta manhã.”
“Há alguma razão para que eu esteja? Mais protestos?”
“Não, não. Como eu disse ontem à noite, está quase terminando. Só precisamos dar um pouco mais de tempo, não tomar nenhuma decisão precipitada. Eu sei que você hesitou sobre nossas doações ao superPAC, mas precisamos fazer tudo o que pudermos para ter acesso a políticos que sejam potencialmente simpáticos a nós.”
“Certo. Mas acabei de falar com Ken, e não se espante em saber que ele acha que isso é um sinal. Talvez tenhamos que repensar nossa posição na política — embora eu saiba que terá grandes implicações para você.”
“Não se trata de mim”, respondeu Betty sumariamente. “Trata-se do que é melhor para a Natural Foods. É absurdo pensar que uma empresa do porte da nossa não precise mexer os pauzinhos em Saint Paul e em Washington. Como você se sentiria se não tivesse tido voz no debate sobre a definição de ‘orgânico’, ou nas discussões sobre tarifas de importação de produtos especiais que nossos consumidores solicitam? Quando a Lei agrícola surgir no Congresso este ano, você vai querer se pronunciar ou não? Essas coisas afetam nosso modelo de negócio. Seria bobagem inibir nosso acesso aos tomadores de decisão, principalmente quando nossas posições sobre todos esses assuntos são sutis. Não podemos explicá-las com filantropia ou reduzi-las a slogans de marketing.”
Harold sabia que ela tinha razão, mas ele não estava totalmente convencido. “O artigo do Star Tribune dizia que somente 10% das empresas de capital aberto faziam lobby no nível federal, e somente metade das empresas indexadas pela Standard & Poor’s contribuía para campanhas. Para começar, eu não acredito nesses números, mas eu os verifiquei. Até numa postagem do Citizens United parece que somos estranhos aqui.”
“Mas já estamos no jogo — e jogando com sucesso, apesar dessa situação com o Erikson”, observou Betty. Ela explicou que a Starbucks e outras empresas adotaram políticas contra contribuições de campanhas há muito tempo. E embora Howard Schultz, CEO da Starbucks, não se preocupasse em ter nas mãos políticos importantes, a maioria dos diretores executivos da empresa não tinha a mesma opinião. “Nós nos reunimos com governadores, com nossos deputados e senadores. Nós nos reunimos com líderes da maioria e de minorias e com presidentes importantes de comitês. Seríamos loucos se jogássemos fora o investimento que fizemos para que isso acontecesse”.
Mesmo antes do Citizens United, a companhia mantinha um PAC tradicional no qual acumulou contribuições de funcionários e acionistas com foco em candidatos específicos. Mas essas doações foram limitadas a US$ 5 mil por candidato. Nos últimos cinco anos a Natural Foods desviou dinheiro de seu tesouro geral para superPACs, onde as contribuições eram ilimitadas e fez lobby em nível nacional.
“Então o que vou dizer a nossos clientes? O que vou dizer aos nossos funcionários?” Harold mudou de posição no assento do carro.
“Como eu disse, Harold, essa situação é anômala e todos irão embora logo. O faturamento das lojas onde houve protestos não foi abalado. Mas a política não vai embora. Precisamos desses relacionamentos.”
Harold sobressaltou-se quando, de repente, alguém bateu no vidro ao seu lado. Era Camilla Fernandez, a sensata conselheira geral.
“Quando baixei o vidro, ela disse: ‘Você está atrasado para nossa reunião’.”
Pode acontecer de novo
Harold estava feliz por finalmente estar no escritório. Camilla sentou-se diante dele.
Herald contou a ela sobre as conversas com Ken e Betty.
“Todos estão opinando de acordo com suas preferências viscerais, Harold. Betty adora política e Ken a odeia. Precisamos ter cuidado.”
“É por isso que eu queria vê-la”, disse ele. “Quero saber sua opinião.”
“Existe um meio-termo?” perguntou Camilla. “Poderíamos contribuir para campanhas exclusivamente por meio do PAC da Associação Nacional de Supermercados? Não teríamos muita influência sobre os candidatos apoiados, mas, se houvesse problemas, a Whole Foods ou a Safeway é que iriam aguentar o tranco, não nós.”
“Mas então também serão eles, não nós, a ter acesso aos legisladores”, retrucou Harold.
“O.k., e se eliminássemos os intermediários?”, sugeriu Camilla. “Simplesmente contribua diretamente para os candidatos que foram exaustivamente analisados.”
“Em qualquer desses casos, nossas contribuições seriam limitadas pelas leis que governam os PACstradicionais. Checar mais candidatos significaria que Betty teria de aprovar novos processos e critérios. E não sei se conseguiríamos um candidato que estivesse alinhado com todos os aspectos que nos preocupam.”
“Estaríamos ainda mais presos ao próximo Pat Erikson.”
Harold acenou com a cabeça. “Isso tudo apenas deixa um gosto ruim na minha boca.”
“O que pensa o Nick?”, perguntou Camilla, referindo-se ao CFO da Natural Foods.
“Ele disse que nem o faturamento das lojas nem o preço das ações foram afetados — e até que sejam ele não tem nada a dizer.”.
“Ele fala como um verdadeiro homem de números”, ponderou Camilla. “Mas estou surpresa que ainda não tenhamos sofrido nenhuma consequência financeira.”
Eu também, pensou Harold.
Uma mudança audaciosa?
Naquela noite, quando Harold voltava para o carro, seu telefone tocou: conversar com Ken zangado teria completado seu dia. Desta vez, no entanto, Ken estava mais moderado. Ele tinha conversado com vários membros do conselho naquela tarde e sua opinião estava dividida.
“Eu estive, o dia todo, pendendo de um lado para outro sobre o assunto”, disse Harold. “Betty levantou fortes argumentos sobre por que precisamos continuar a investir em política. E Camilla forneceu alguns bons conselhos sobre formas que poderiam nos manter ativos com menos risco.”
“Betty está promovendo a empresa e Camilla é advogada — naturalmente ela vai tentar mediar as partes e negociar um compromisso palatável. Mas essa é sua oportunidade de fazer uma mudança audaciosa e fazer o que é certo para a empresa. Existe uma cisão real, Harold. As pessoas estão esperando que você indique o caminho.”
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A Natural Foods deveria parar de fazer doações para campanhas? Os experts respondem.
Ken Cohen é vice-presidente de relações públicas e governamentais da Exxon Mobil Corporation.
Do meu ponto de vista, o centro dessa controvérsia é, na verdade, a reação da administração às acusações de discriminação. A primeira prioridade da empresa deveria ser de esclarecer sua posição sobre a questão do casamento gay e assim mudar a percepção que a Natural Foods tem em comum com a visão dos candidatos. Da forma como está, os eventos estão definindo a posição da empresa. Uma comunicação interna do CEO, mesmo tão defensiva como a que apresentou, não é suficiente. Harold (ou um porta-voz específico) precisa dizer que a Natural Foods se opõe à discriminação de qualquer tipo — ponto. Então sua equipe precisa divulgar essa mensagem numa série de mídias — postar em blogs, mostrar nas lojas, ou o CEO dar uma ou duas entrevistas.
Isso feito, a Natural Foods, não deve parar de fazer doações para campanhas. Qualquer companhia de porte e influente deve estar ativamente engajada em processos políticos, e isso inclui doações políticas. Uma vez em suas bancadas, é provável que os candidatos respondam razoavelmente aos que os ajudaram.
No mundo atual, onde negócios são altamente regulados, líderes corporativos que insistem em se manter fora da política podem estar sendo negligentes com suas responsabilidades fiduciárias. Não só a postura de Ken King é irrealista para a Natural Foods, mas ela pode prejudicar o valor dos acionistas no longo prazo, deixando a empresa à mercê de interlocutores externos. Na Exxon Mobil, onde eu liderei o PAC da empresa, vimos nas doações para campanhas uma forma importante de nos envolver em discussões políticas. Afinal, poucos setores são mais fortemente regulados que a energia.
Ao fazer contribuições, procuramos candidatos com uma história de apoio a mercados abertos, que entendam de negócios e tenham demonstrado disposição em ouvir os fatos envolvidos num determinado debate. Certamente não esperamos que um candidato que apoiamos vote a nosso favor 100% do tempo, mas procuramos ter uma voz que nos represente no debate. Camilla, a conselheira geral, sugere examinar melhor os candidatos, mas obviamente nem sempre isso é possível. Focamos em como os candidatos se posicionam diante de questões que são centrais para nosso negócio.
Recentemente alguns investidores que partilham a visão de Ken King apresentaram propostas alternativas que impactariam nossa capacidade de influenciar políticos. Até hoje, no entanto, essas iniciativas não receberam muito apoio de outros acionistas.
A Natural Foods não deveria desistir de seu papel na política por causa desse incidente. Campanhas geram controvérsia e debate, que a mídia cobrirá. O que importa é como você se sai nessas situações. Desde que Harold e sua equipe deixem claro o que a empresa representa, a Natural Foods pode sobreviver a essa tempestade e manter o acesso aos tomadores de decisão do governo, o que lhe garante um lugar na mesa de debates políticos relevantes para seus negócios.
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John Harrington é presidente e CEO da Harrington Investments, uma empresa de consultoria em administração certificada.
Ken King está coberto de razão quando afirma que a Natural Foods precisa ficar fora da política. Fazer doações políticas não é fazer bom uso do dinheiro da empresa e, como a situação atual demonstra, pode prejudicar sua reputação.
Executivos geralmente enquadram contribuições de campanha como investimentos no futuro da empresa — uma necessidade, se eles quiserem se engajar no processo político e garantir legislação fiscal e contratos de negócios favoráveis. Mas esse argumento tem muitas implicações.
Quando a companhia doa dinheiro para um PAC (ou superPAC), por exemplo, ela não tem como controlar onde o dinheiro é gasto, como deixa claro o caso da Natural Foods.
Mesmo que sua doação seja feita diretamente para a campanha política, você não garante que seu candidato, se eleito, sinta-se obrigado a lhe favorecer em todos os assuntos. Representantes eleitos decidem sobre centenas, até milhares, de projetos de lei todos os anos, e devido à forma como o sistema funciona eles precisam costurar acordos e negociar votos que podem funcionar contra seus interesses. Políticos também são conhecidos por repassar parte de suas verbas de campanha a outros, para garantir um voto, a indicação de um comitê, ou uma posição de liderança. Sua influência como doador corporativo é extremamente limitada e sua doação pode até ser usada contra você.
Há outro problema que Betty Martin mencionou: quem decide que ações políticas, comitês ou candidatos devem ser apoiados — um comitê do conselho, o CEO ou outra pessoa? E como você pode ter certeza de que o tomador de decisão não está favorecendo doações que aumentem seu poder pessoal, e não necessariamente os interesses da empresa?
Em minha opinião, lobby é a melhor forma de usar fundos corporativos. Embora eu tenha reservas sobre como ele é feito, pelo menos ele é específico para um assunto, você tem mais controle sobre o destino do dinheiro e como ele é usado, e obtém resultados mais específicos e documentados.
Desperdiçar dinheiro é um risco. Prejudicar a reputação também é um risco. Quanto mais as empresas dominam o sistema político, maior a chance de reação pública. Os clientes da Natural Foods reagiram a uma determinada contribuição, e isso é certamente um perigo. Mas um número crescente de americanos vê a questão de forma mais genérica: eles não querem apoiar empresas que tentam “comprar” políticos e corromper o sistema.
Para proteger a Natural Foods desse futuro, Harold deveria comunicar ao conselho que ele quer que a empresa pare de contribuir para campanhas. Eu apresentei resoluções dos acionistas contra esse efeito na Starbucks e à operadora de assistência de saúde WellPoint. Elas foram rejeitadas porque os executivos e outros investidores queriam reservar-se o direito de fazer doações em algum momento no futuro. Isso foi considerado falta de visão e voltará a assombrar a administração.
Se a Natural Food continuar com a doação política, provavelmente enfrentará mais e mais controvérsias como a que está enfrentando agora.
Fonte: HBR